segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Crise, feridas e cicatrizes, artigo de Pe. Alfredo J. Gonçalves

[EcoDebate] Toda pessoa ou sociedade, em algum momento de sua trajetória, passa pelo que se pode denominar situação-limite. Situação em que ... thumbnail 1 summary
[EcoDebate] Toda pessoa ou sociedade, em algum momento de sua trajetória, passa pelo que se pode denominar situação-limite. Situação em que as próprias forças se esgotam. Parafraseando Simone de Beauvoir, é como se as estrelas se apagassem no céu, os marcos desaparecessem da estrada e o chão sumisse debaixo dos pés. Em meio ao desespero, temos de apelar para algo ou Alguém superior a nós mesmos. Produz-se uma sensação que, de ponto de vista religioso, poderia ser assim descrita: “Até aqui eu caminhei com minhas pernas. Daqui para frente, não posso mais, minhas forças não permitem. Estou em tuas mãos, Senhor!”.

São diversas as situações-limite. Podem ser de ordem pessoal, familiar ou comunitária, mas também podem ser de natureza social, econômica, política e cultural. Em termos históricos, as grandes transições paradigmáticas provocam crises generalizadas, atingindo entidades, organizações, movimentos, regras gerais e até os poderes estabelecidos. Nessas diversas instâncias, podem questionar leis e costumes, além de causar insegurança, instabilidade e incerteza. As verdades são substituídas pelas dúvidas, as respostas dão lugar a novas perguntas. Talvez a crise se instale quando as interrogações existenciais sejam maiores que nossa capacidade de responder.
 
No âmbito pessoal ou familiar, tais situações abrem feridas profundas no coração e na alma. Diferentemente das feridas do corpo, essas costumam ter um processo lento e laborioso de cicatrização. Pior ainda, mesmo após os momentos mais graves, permanecem no substrato da memória como água represada. Ao menor sinal de que podem repetir-se as circunstâncias que provocaram a debilidade e a ferida, a cicatriz pode romper-se como uma represa, voltando a sangrar dolorosamente.
 
A memória da ferida, da cicatriz e da possibilidade de esta reabrir-se faz a pessoa, e até mesmo a sociedade, conviver com um medo vago e indefinido, uma espécie de temor constante. Quando ela chega novamente à fronteira de suas energias, esse temor, ainda que vago, torna-se bem presente e ameaçador. É como se um fantasma desconhecido rondasse a porta de casa, perturbando os moradores que procuram abrigar-se no recanto mais íntimo.

Numa perspectiva histórica, esse fantasma povoou as mentes e os bastidores da década de 1930-40, por exemplo, logo após a crise de 1929. A instabilidade gerou os regimes totalitários que se impuseram em vários países, especialmente na União Soviética, na Itália e na Alemanha. Nazismo, fascismo e holocausto constituem feridas mal cicatrizadas e que sangram com certa freqüência através da intolerância recorrente de grupos organizados. Também nos anos 50 e 60, apesar da euforia do crescimento econômico e do “Estado de bem-estar social” keynesiano, o fantasma da guerra fria e da ameaça nuclear fez o Papa João XXIII publicar a encíclica Pacem in Terris.
 
Frente a tais fantasmas, o medo toma conta de todo o organismo, pessoal ou social. Percorre as veias geladas de indivíduos e instituições, penetra nas entranhas mais ocultas do ser. Como água em fúria, invade o coração, a cabeça e o espírito de todos. Inunda o terreno vivo das emoções e dos sentimentos, deixando a pessoa ou a sociedade sem controle sobre os próprios pensamentos, ações e reações. Das duas uma: ou nos projeta a um ritmo alucinado de atividades, tentando esconder sobre elas sua face desfigurada; ou paralisa completamente nossos membros e movimentos, deixando-nos doentiamente apáticos.
 
É neste sentido que autoritarismo e submissão são duas faces da mesma moeda; o grito de violência convive com o mutismo na inibição. O déspota diante dos mais fracos costuma ser subserviente aos pés dos poderosos. Dentro do oprimido, não raro, mora um opressor em potencial. Implícita ou explicitamente, o tirano conta muitas vezes com a cumplicidade dos subjugados.
 
Reproduz-se a ambigüidade de toda crise. Esta ou nos leva ao berço, ao colo da mãe, onde podemos chorar as mágoas, às vezes afogando-nos nelas; ou nos leva à fronteira, onde rompemos todos os limites e rasgamos novos horizontes. Talvez seja mais correto dizer que toda crise, num primeiro momento tende a refugiar-nos no aconchego do berço, mas, passado algum tempo, ou ela se perpetua e nos asfixia definitivamente, ou nos revigora para novos desafios.
 
Numa palavra, a situação-limite, com sua respectiva crise, costuma conduzir os débeis e imaturos a um passado saudosista, onde eles podem encontrar um ninho para fugir a novas tempestades. Por outro lado, costuma levar os adultos amadurecidos nas tormentas da vida a renovar a própria coragem, a enfrentar o sertão desconhecido do futuro. Nele são chamados a abrir veredas imprevistas. Em síntese, a crise tende a enfraquecer os já debilitados, ao mesmo tempo em que pode fortalecer os mais robustos. A exemplo dos vasos, é na queda que se revela a resistência do ser humano.
 
No cenário da crise e da nova geopolítica mundial, que surpresas nos escondem os anos vindouros? Que estratégias desenvolverão os defensores do sistema capitalista, camaleão sempre disposto a mudar de cor conforme as circunstâncias? No tabuleiro do xadrez social, político e econômico, como se comportarão os países centrais, os países emergentes e os países subdesenvolvidos? E nós, pessoalmente, que tivemos a carne e o espírito fundamente rasgados pela crise, o que faremos para superar esta situação-limite? Nesta encruzilhada, que caminho tomar?
 
São perguntas para as quais não há respostas imediatas. Deixo-as aí, como pássaros errantes, à espera de um galho sobre o qual pousar. Talvez hoje não passemos de pássaros errantes, sôfregos atrás de uma resposta que nos livre do terreno minado das perguntas. Daí o risco de se atirar avidamente sobre o primeiro galho que estiver à mão. Ele pode estar podre ou ser muito frágil. Ainda que no escuro, vale a pena continuar o vôo em busca de uma árvore mais segura. Ou lançar a semente ao solo, cultivá-la com carinho, à espera que a planta crie raízes sólidas e depois se lance ao céu da liberdade.
 
* Pe. Alfredo J. Gonçalves é Assessor das Pastorais Sociais.

** Colaboração do Centro de Estudos Políticos Econômicos e Culturais CEPEC para o EcoDebate, 23/08/2010
 
Fonte de Pesquisa: EcoDebate 23/08/2010
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